9 de dez. de 2009

1964 – UM RELATO SUBVERSIVO (André Costa Nunes)

O escritor e garçon do restaurante rural, TERRA DO MEIO, André Costa Nunes (ah, e meu genitor), postou mais uma história no seu blog Tipo assim... folhetim. Mais uma leitura deliciosa para um dia, qualquer dia, ensolarado ou não.



- Não é justo o que vocês estão fazendo comigo. Nunca foi assim. Nunca tive a primazia nas discussões. Quando vocês me deixavam falar primeiro era só pra sacanear depois. Tudo combinado, de caso pensado. Pois bem, eu é que tenho um mundo de perguntas a fazer. Não se trata mais de putaria, leviandade. O que está acontecendo aqui é da maior importância para Altamira, para a Amazônia e para o Brasil.

Essas coisas só se sabem como começam e, às vezes, o resultado final. Progresso, riqueza, desenvolvimento, energia, indústria, universidades, novos horizontes para as gerações futuras. É conhecido, o antes, e previsível o depois, como um moinho. O grão bruto antes e o pão depois. Tudo o que fica no meio é esmagado. Vira pó, farinha. E é essa farinha que vai permitir que haja o pão, o bolo, o espaguete, o brioche. Diante da iguaria quem se lembra da espiga, ou mesmo do grão? Houve um tempo em que cheguei a pensar que havia pé de macarrão. Já adulto foi que descobri que maisena era feita de milho. Não que aceite a teoria da necessidade de quebrar os ovos para fazer omelete, mas tem sido assim em todo o Mundo. Com ou sem violência.

O marasmo, a inércia, até por definição, apenas conduzem ao atraso. Lutar pela permanência do status quo ante é remar contra a maré. O máximo que resta é estarmos preparados para conduzir o processo e amenizar os impactos. Administrar as contradições. Proponho uma postura cartesiana: dividir o objeto do estudo para melhor compreensão. Partir do mais simples para o mais complexo…

- Ora não fode Herodes porra! Meu ouvido não é penico, interrompeu impaciente o Helio Miguez. Não é para ouvir essa merda de discurso acadêmico que estamos aqui onde sempre estivemos, desde meninos, na beira do Xingu. Pra ver a banda passar, ninguém precisa da tua opinião. Eu vou tirar o time. Ajudar a Mundica a fazer vinagre de manga dá mais futuro.

Ele, quando estava com raiva, chamava a mãe de Mundica.

- Demora aí, Helio. Foi mal. Passa a régua. Falei merda.

Inexplicavelmente o Eduardo Besouro veio em meu socorro.

- Deca, desde o início, quando começaste a falar bonito, latim e René Descartes, que sacamos que estavas em bundas, querendo ganhar tempo. Só o Helio Miguêz pegou corda. Nem notaste nossa cara de gozação. O Dimas fez menção de contestar, mas dei-lhe um beliscão. Queríamos ver até onde ias chegar. Esse discurso é mais velho de que a posição de cagar. Todo mundo sabe que não é isso que tu pensas. Podes até te empolgar como muitos de nós, mas no fundo, o velho Xingu fala mais alto. Vamos dar um tempo, mudar de assunto. Por enquanto.

- É isso aí, concordou o Afolemado. Pra começar, conta a cagada de como a revolução de sessenta e quatro te apanhou.

- Revolução o caralho. Golpe! Retrucou o Eduardo que não deixava passar nada.

- Tá bom, porra, golpe, mas conta o que sucedeu no dia exato. Antes, agente sabe, depois também, mas está faltando alguma coisa, inclusive da tua passagem por aqui. Não ficou claro, pelo menos para mim, o que aconteceu em Santarém, se foste preso, pegaste porrada, te cagaste, pediste penico. Alimenta, depois voltamos para a Transamazônica, não pensa que vais sair dessa de flosô.

- Vamos lá, mas porra, vê se não interrompe.

- Então não conta. Sem interromper, sem sacanear não tem a menor graça. Estás muito mal acostumado. Ninguém aqui é teu aluno. Falou o Chico Preto.

- Não sou mais professor, aliás, nunca fui. Quebrava o galho para descolar algum.

- Conta, caralho, mas não enrola nem busca muito fundamento. Começa assim: primeiro de abril de mil novecentos e sessenta e quatro.

- Primeiro de abril é o mote perfeito. Podes mentir a vontade. Provocou o Eduardo.

Quis protestar, mas resolvi ignorar. De outra maneira, não seria minha corriola.

***

SANTARÉM

Acordei por volta das seis, seis e meia da manhã, já nem me lembro bem. Era dia dois de abril do ano de mil novecentos e sessenta e quatro. Do lado de fora da porta do meu quartinho acanhado conversavam dois ou três colegas do Banco de Crédito da Amazônia onde trabalhávamos. De um, lembro-me bem. Era o Licurgo Anchieta, vocês conhecem, filho da D. Vanjoca, irmão da Coló e da Lucimar.

Comecei depois de algum tempo em silêncio como para organizar a memória. A corriola, para minha surpresa, permaneceu atenta e também silente. Eu estava numa espécie de transe, olhar vago, perdido, fitando algum ponto perdido no meio do rio Xingu, entre nós e a ilha do Arapujá. Continuei, sem impostação, pompa ou circunstancia. Como se sussurrasse em voz alta.

- Estão procurando pelo André. A polícia militar e o pessoal do Tiro de Guerra estão varejando toda a cidade. Diz-que é ordem expressa de Belém. Alguém falou em voz baixa.

...

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